Corumbá (MS) – Olhinhos brilhando e toda a atenção do mundo voltada para a contadora de histórias. Assim estavam as crianças das escolas Acaia Pantanal e Tilma Fernandes, que foram de ônibus até o CRAS Itinerante na tarde desta quarta-feira para ouvir a maravilhosa história intitulada “Jogo da Memória”, contada pela pedagoga e contadora de histórias Jusley Monteiro de Souza. A atividade faz parte da programação do 16º Festival América do Sul Pantanal.
“Jogo da Memória conta a história de um contador de histórias, que é o personagem principal da história. Ele está perdendo a memória. Então ele sai da ilha isolada em que ele vivia, que é a ilha de Páscoa, no Chile, em busca de viver as suas histórias na pele e poder de alguma forma relembrar elas todas. “É como se ele estivesse jogando com a própria memória dele, era como se ele estivesse tentando encontrar uma forma de driblar esse esquecimento que ele está tendo, essa perda de memória… Ele não sabe ao certo o que está com ele, porque ele está perdendo a memória, mas ele imagina que se ele viver as histórias na pele dele, se ele percorrer o mundo ele vai tê-las de volta”, explica a contadora de histórias de Corumbá, Jusley Monteiro de Souza.
E dá certo, porque quando ele chega no Peru volta na memória dele, ele percebe que o chão está se mexendo e que é uma cobra enorme, que ele caminhou a noite inteira sobre ela. “Ele se lembra de uma história do povo dele que fala de uma cobra muito grande, quando ele passa pela fronteira entre Argentina, Brasil e Paraguai, ele descobre que também tem uma lenda indígena que fala de uma cobra enorme que deu origem às cataratas, aí ele descobre isso e traz essa história na bagagem dele, na memória dele, só que ele percebe que o tempo dele está acabando, que se ele não voltar, nem as histórias que ele tem não serão repassadas. Então quando ele volta, ele descobre, quando ele encontra o ‘tunch’, um ser do Peru, que fala para ele “Não na pele o risco, sim na mente o mito”, aí só quando ele chega no povo dele é que ele descobre que ele não precisa ter na pele o risco, que ele pode ter esses mitos todos gravados na mente. Aí ele começa a passar todos os dias essas histórias. Ele percebe que uma história é amarrada na outra. Ele conta uma, se lembra de outra. No final ele percebia que não era para ele jogar o Jogo da Memória como ele estava jogando, mas que era para jogar com esse exercício de continuar fazendo, que elas iam continuar surgindo por si próprias”.
Ao terminar a contação de histórias, a esperta Gabriela do Carmo da Silva disse que a história que ela ouviu fala sobre um contador de histórias que estava envelhecendo e queria uma pessoa para substituí-lo. “Ele estava esquecendo, tentava lembrar as histórias. Ele lembrou, voltou para a aldeia. Ele escolheu uma menina, uma bebê, para ficar no lugar dele, ela tinha que completar 13 anos para ela poder ser uma contadora de histórias. Aí ela ficou no lugar dele. Eu achei legal a história. Eu vou contar essa história pra minha mãe e meu pai”.
Jaína (esq.), Gabriela (dir.)
Sua amiga Jaíne da Silva Rosa também gostou da história: “Eu achei bem interessante, eu aprendi muitas coisas com essa história. Foi bem legal aprender coisas novas, conhecer pessoas novas. Eu aprendi que você não precisa viajar para conhecer novas histórias, você pode criar novas histórias na sua mente”.
A coordenadora do CRAS Itinerante Gislaine Melise Aguerra da Conceição, falou que é de grande importância receber o evento de contação de histórias do Festival na instituição. “Para nós é uma grande satisfação mostrar para as nossas crianças a questão cultural, principalmente, e que elas possam conhecer mais sobre outros países, a gente proporcionar que as crianças tenham contato com as informações referentes aos países da América do Sul. A gente sabe que as histórias são contadas de gerações para gerações, principalmente a gente entender um pouquinho, já que somos uma cidade fronteiriça, você conhecer um pouco dos países fronteiriços, porque faz parte da história, da realidade de nossas crianças”.
A contadora de histórias Jusley fala que já participou do Festival América do Sul Pantanal em 2018, que foi sua primeira participação no Festival. “Eu achei fantástico na época porque é um evento que eu venho acompanhando desde a adolescência. Mas agora está sendo diferente, depois da pandemia a gente fica pensando: quais serão os momentos, como vai ser esse encontro novamente com as crianças. Nós já vínhamos acompanhando um público que tinha desenvolvido o hábito da leitura, da escuta, e agora depois da pandemia essa formação do público está começando como se fosse do zero. As crianças, a gente começa a contar a história de novo para eles e a gente percebe que esse hábito da escuta foi se perdendo, e a gente está resgatando de novo”.
“Mas outra coisa que eu percebo é que a gente não tinha mais direito ao contato: o uso da máscara, o afastamento, a gente ficou contando, durante a pandemia, as histórias todas para o vídeo, então ter o retorno dos olhinhos deles, ver a reação, é muito importante. E este é um evento grande. Diferente dos eventos de contação de histórias que às vezes a gente consegue reunir um grupo pequeno, no Festival América do Sul a gente consegue reunir um grande número de crianças aí vê várias reações acontecendo ao mesmo tempo. Para mim, é como aquele retorno que, pro contador de histórias, o maior retorno é ver na carinha delas, nos olhinhos delas que está acontecendo alguma coisa dentro da mente delas. Eu vejo que a narrativa invisível do que está acontecendo está sendo desenvolvida ali”, explica a pedagoga.
Para ela, foi uma oportunidade muito legal de trabalhar com este tema dentro do Festival América do Sul Pantanal: “a gente traz mitos de outras regiões e a gente se reconhece enquanto sul-americano. A história lá do Peru eles se lembraram, eles vão se lembrar do minhocão aqui de Corumbá, que é do Brasil, eles vão ter ouvido sobre o boi tatá, da Amazônia, que também são cobras grandes. Então a gente vai ouvir a história do outro e saber que em toda América do Sul essa história se repete, a historia do tunch, curupira eles falaram, saci, são seres que assobiam e chamam a gente. Então eles estavam se reconhecendo nos seus próprios mitos, com mitos que são reproduzidos por toda a nossa América do Sul. Eu queria que as crianças fossem para casa com essa vontade de viajar, de conhecer toda a América do Sul, de conhecer as histórias que estão aí, de produzirem suas próprias histórias e voltar para contar para todo mundo o que eles viveram”.
Texto: Karina Lima
Fotos: Alvaro Herculano