Corumbá (MS) – Quem estava transitando pela Praça da Independência, em Corumbá, na tarde deste sábado (28.05), foi surpreendido por dois bailarinos vestidos com macacões de cores preta e amarelo realizando uma performance e interagindo com as pessoas na praça. Trata-se da intervenção Deriva, realizada pelos bailarinos Ralfer Campagna e Jackeline Mourão, do programa Plataforme-se, durante o 16º Festival América do Sul Pantanal.
O programa Plataforme-se é um espaço de criação, experimentação e difusão das produções em dança e videodança, a partir de Campo Grande/MS. A plataforma, também virtual, foi idealizada pelas artistas da dança Ralfer Campagna e Jackeline Mourão, em 2017, e promove ações a partir da tríade: corpo, câmera e cidade.
A primeira iniciativa resultou no espetáculo-intervenção Deriva, uma criação com perspectiva de ocupação e interação, explorando as questões fronteiriças da cidade. “A gente identifica como um espetáculo intervenção, nós somos artistas da dança e a gente trabalha com essa ideia de performar a dança nos espaços urbanos, então a gente tem essa ideia de trazer a dança para a rua, para as praças, está dentro dessa categoria. A gente parte da dança mas acaba caindo no lugar da performance também”, explica o bailarino Ralfer Campagna.
A ocupação dos espaços urbanos externos com a dança era um desejo dos dois bailarinos pelo fato de as pessoas não terem acesso ao teatro. “O teatro é um lugar que às vezes somente um grupo específico tem acesso e a gente queria trazer para onde as pessoas não estão acostumadas a ver dança, na rua onde todo mundo está transitando, faz parte do seu dia-a-dia, em algum momento você está passando por alguma praça no Centro da cidade, e isso poderia criar um ruído e desconectar ela desse fluxo do dia-a-dia”.
Jackeline completa: “E também como uma inquietação de trazer a dança para a rua, qual é esse corpo que dança na rua, que a gente chega no espaço, a gente não se apresenta, a gente não diz que vai vir dançar, a gente dança e lida com o que está acontecendo na hora na praça, por isso que a gente chama de uma intervenção urbana: a gente chega na praça, e aí é onde a intervenção acontece, com quem está passando, e as pessoas passam, ficam com a gente, vão embora… A intervenção é para quem está de passagem na rua”.
“A gente vem com a intenção de trazer esse ruído, porque dentro desse contexto da cidade, o que não faz parte desse contexto é um ruído, então a dança não estando dentro da cidade, no dia-a-dia das pessoas, na rua, nas praças ou em qualquer lugar que for dentro do espaço urbano, acho que ela acaba criando esse ruído, trazendo uma outra percepção sobre a cidade”, diz Ralfer.
O que Ralfer entende como ruído, a bailarina Jackeline Mourão entende também como poesia. “E também de trazer essa poética da cidade, essa poética do lugar. Muitas vezes a praça é um lugar que a gente só passa para ir para o trabalho, a gente nem olha. A gente também vem com essa ideia de dar a ver o lugar onde a gente vive, dar a ver a praça, o espaço onde a gente está e talvez, através da gente, as pessoas puderem permanecer, se acalmar, observar a praça através da gente, através dos nossos olhos, movimentos. Também de trazer essa poética para o dia-a-dia das pessoas que estão transitando”.
Ralfer dança desde criança, e isso o aproximou cada vez mais da dança, entendendo ela como um lugar profissional, de conhecimento, eu foi entendendo que ele poderia viver de dança, se profissionalizando nessa área. Ralfer e Jackeline vieram de lugares diferentes e acabaram se encontrando. Ela veio de projeto social, começou a dançar na escola pública, e não parou desde então, foi indo de grupo para grupo, sendo convidada para trabalhar na Cia Dançurbana, onde ela e o Ralfer trabalham e de onde se deslocaram para criar esse trabalho autoral.
O processo de criação dos dois bailarinos surge a partir da inquietação. “Como nossa experiência de estar sempre no teatro fez a gente pensar em como é que poderia ser esse lugar de trazer a dança para a rua. Mas a partir de referências, porque a gente não está criando nada do zero, isso já existe, mas foi um desejo nosso de estar nesse lugar também, daí a gente foi conversando e dialogando sobre isso”.
“Esse processo é cheio de trabalho, de crise, de construção, de diálogo. Então vai desse lugar que é menos romântico, no sentido assim de: ‘ai, me inspirei em algo e fui só fazendo a parte da inspiração’. Acho que vai também de estar insistindo naquela ideia, de estar meditando sobre as questões que isso traz, o que você está propondo em cena e de ir fazendo as escolhas para isso. Então é muito trabalho e muito estudo para a gente conseguir manter e desenvolver alguma coisa que a gente possa trazer para o público e experimentar”.
Para Ralfer, todas as escolhas são políticas, tudo é político hoje em dia, tudo o que o que se faz é uma escolha política, Vvocê sabe para onde você está levando a sua arte a partir do que você está escolhendo para propor em cena e dialogar. Dentro desse trabalho a gente está trazendo essa ideia de que a cidade é nossa, a rua é nossa, a gente precisa ocupar esses espaços, como ocupar esses espaços, interagir com esses espaços, como se sentir pertencente a esses espaços. É uma luta que é individual mas ela também é coletiva. E a gente fala sobre isso no trabalho, sobre esses limites entre o que é privado e o que é público, o que pode e o que não pode na cidade, qual o jeito de se comportar na cidade. Então dentro deste trabalho especificamente a gente fala sobre esse lugar. Mas eu acho que todo trabalho tem uma escolha política e é importante a gente estar refletindo sempre sobre essas escolhas que elas não estejam, talvez, invisibilizando pessoas que estão aí no protagonismo também e que não são visibilizadas”.
Para a dupla, foi uma alegria ter sido selecionada por meio de edital para se apresentar no Fasp. “A gente fica muito feliz porque a gente percebe o quando nosso trabalho está sendo observado, está sendo potente, porque a gente está conseguindo entrar em alguns espaços, mesmo que a gente mande 50 propostas e só duas passem, a gente já fica feliz. É sempre uma emoção muito grande, principalmente a gente que é jovem criador, tem cinco anos com esse projeto, pra gente é muito importante estar nesses lugares porque a gente começa a estar em cena e dentro desses eixos que normalmente são sempre repetitivos, são sempre as mesmas companhias, os mesmos grupos. Então quando isso acontece, existe uma rotatividade que é importante ter nesses festivais. Para a gente foi uma alegria, ainda mais nessa retomada do Fasp depois deste período pandêmico que foi terrível pra gente da área cultural. Vida longa ao Festival!”
Na Praça, estava assistindo o professor de Arte do Instituto Federal de Mato Grosso do Sul de Corumbá, ator, produtor cultural, dançarino e performer Roma Hilário. Ele gostou muito da apresentação e disse que o contato com o público foi algo muito especial neste caso. “Esse espectador que está aqui e de alguma forma ele fica ativo dentro do trabalho e o trabalho do grupo está muito nesse lugar de interação com esse público que está aqui, com esses transeuntes. Tem essa coisa também de modificar, de mexer no fluxo da cidade. A cidade tem um ritmo, tem um tempo, e daí os performers aparecem e modificam isso com seus corpos, com essas imagens corporais que vão sendo criadas, com esses objetos, com esse contato, esse jeito de chegar no público. Então essa performance especificamente, trabalha nesse campo muito da interação, essa coisa do audiovisual também presente, e, enfim, está muito voltada para o contato com o público, eu percebo essa valorização que é algo da arte contemporânea”.
Roma Hilário (ao centro)
“Eu gosto muito da performance, e especificamente por acontecer na rua, porque esse lugar é que a gente fala, cotidiano, e aí a performance vem quebrando esse ritmo e trazendo esse extra-cotidiano. Então essas imagens que parecem óbvias às vezes, mas que, trazendo num outro tempo corporal, num outro espaço, me toca muito, eu gosto de estar na rua, que foi onde eu comecei”, diz Roma.
Márcio Júnior, bailarino da Companhia de Dança do Pantanal, de Corumbá, participou ativamente da performance. “A apresentação de hoje me impactou primeiro fisicamente, porque eu corri bastante com eles. (risos). Eu comecei meio perdido, na verdade, tentando entender o que eram as linhas, essas faixas, mas no final eu entendi que é essa coisa de espaço, de entender qual o seu espaço e também meio que esse rolê de câmera e celular, que a gente é muito preso a isso. A gente está sempre com ele na mão, está sendo muito preso, parece que ele controla a gente. E aí a gente acaba que tudo quer postar, tudo quer estar mostrando, Foi meio que a minha participação, que a pessoa que quer se exibir o tempo todo, está ali prendendo outra pessoa também para fazer esses momentos com ela”, finaliza.
Texto: Karina Lima
Fotos: Marithê do Céu