Inspirado na obra modernista do corumbaense Lobivar de Barros Matos, que se autodenominou “desconhecido”, mas é reconhecido e celebrado décadas depois de sua morte, em 1947, o movimento cultural Sarobá – nome do seu livro que retrata “a mancha negra na cidade mais branca do mundo” – chega a terra natal do poeta com o Festival América do Sul Pantanal de 2022 no sarau de rua itinerante do Teatro Imaginário Maracangalha.
O evento de múltiplas linguagens artísticas foi realizado entre a tarde e noite de quarta-feira (25) no entorno do antigo Sarobá, bairro habitado por ex-escravos negros e retratado por Lobivar Matos em 30 poemas que escancaram a discriminação, o abandono, a miséria e a libertinagem a que eram submetidos, à margem da sociedade. Hoje, o bairro integra a cena urbana da cidade, se chama Borrowisk – porém, ainda é considerado “boca quente”.
“Estamos aqui para contemplar esse lugar e pessoas, com um olhar diferente, resgatando a memória, os botecos, as antigas histórias, as festas e as orgias, dialogando e retratando uma energia indescritível como pontos de encontros”, diz Fernando Cruz, 58. Ele assina a direção e dramaturgia do espetáculo, que nasceu em Campo Grande há 15 anos e pela primeira vez é realizado em Corumbá – a “Cidade Branca” a que o poeta se refere em suas metáforas.
Já foi Boca Maldita
Com dois prêmios da Funarte pela sua contribuição à cultural, o Teatro Imaginário Maracangalha se propõe a tirar o poeta corumbaense do anonimato, dando visibilidade a uma obra hoje celebrada e reconhecida pela crítica. O grupo é composto por atores e produtores de arte e cultura e desenvolve ações continuadas de pesquisa, montagens e apresentações públicas que unem circo, cinema, moda, gastronomia, dança de rua e teatro.
O “Sarobá Boca do Mundo”, um dos destaques da programação de quarta-feira do FASP 2022, durou mais de dez horas e foi realizado em um espaço de boemia, cercado por botecos, uma feira livre tradicional e, ao lado, um mirante, onde se contempla o Rio Paraguai e o Pantanal. Integra três bairros – o Beira-Rio (ou Peixeirada), o Fortaleza (onde havia um forte dos tempos da Guerra do Paraguai) e o Borrowisk, ainda afamado por ser notícia na crônica policial.
A agitação no lugar chamou a atenção dos moradores, que saiam às calçadas ou se aglomeravam em frente aos bares, onde a cerveja era a bebida preferida. Dono do antigo Bar Boca Maldita, hoje Domingão Pantaneiro, Odival Rodrigues Arruda nasceu ali na beira do rio há 57 anos e vivenciou o lado marginal e a urbanização da região esquecida e retratada pela poesia de Lobivar Matos. “Acabou a gangueira, a gente vive tranquilo aqui”, garante.
O poeta não morreu
O espetáculo entre a Avenida General Rondon e a Rua Ladário também homenageou duas mulheres ativistas culturais de Corumbá: Bianca Machado, que há 25 anos comanda o movimento Boemia Cultural, e Marlene Mourão, a Peninha. Bianca dirigiu e integrou uma performance teatral – Crônica de Vênus – e também se apresentou com a Companhia Maria Mole, em atividade há 26 anos. “O poeta não morreu, veio para a rua e é modernismo”, vibra.
O sarau contou ainda com a participação dos grupos corumbaenses Cotidiano Difícil e Poetas do Morro, animando a galera com dança de rua em grande estilo e engajamento com as causas sociais no melhor do hip hop. Outra atração foi o show de malabarismo e equilibrismo do casal Guga Morales e Manu Montes, do Rio de Janeiro. “Estamos muito felizes por essa oportunidade”, diz Guga, cujo pai, agostinho, serviu na Marinha de Ladário há 50 anos.
O Festival América do Sul Pantanal, em sua 16ª edição, é promovido pelo Governo do Estado, por meio da Fundação de Cultura. Com extensa programação cultural em Corumbá, Ladário e nas cidades bolivianas de Puerto Quijaro e Puerto Suarez, situadas na fronteira, o evento segue até o dia 29 de maio. São 118 atividades, 25 oficinas e atrações de mais de 11 áreas artísticas, conforme anunciou o governador Reinaldo Azambuja ao lançar o FASP no dia 10 de maio.
Texto: Silvio Andrade