Corumbá (MS) – Crianças espalhadas pelo chão, por cima da árvore próxima, e adultos de todas as idades, que ficaram sentados mais atrás, nas cadeiras, puderam apreciar um espetáculo circense que faz pensar e diverte, ao mesmo tempo. É o Circo Fubanguinho, da Trupe da Lona Preta, que veio de São Paulo especialmente para Corumbá, para se apresentar no Festival América do Sul Pantanal. A apresentação foi na manhã deste domingo (29.05), nas proximidades da Feira Livre.
Os membros da trupe, Sérgio Carozzi, Joel Carozzi, Henrique Alonso, Wellinton Bernardo e Alexandre Matos, arrancaram gargalhadas com a história de dois integrantes de um circo que foram demitidos e fazem de tudo para voltar a trabalhar no mesmo circo. O espetáculo questiona as relações de trabalho entre patrão e empregador. “A dramaturgia, as cenas, a direção é toda nossa. Eu e meu irmão que já fazíamos essas cenas clássicas a gente puxa um roteiro, a dramaturgia, e vai fazendo a peça e dirigindo olhando de fora, filmando. Ao fazer isso a gente já vai construindo tudo. O Wellinton, do trombone, ele cuida mais da parte musical, dos arranjos, então a gente vai construindo a dramaturgia e já vai também ao mesmo pensando na música, no figurino, não é uma coisa descolada, o cenário, tudo vai nascendo junto. A gente vai fazendo os rascunhos, a partir do rascunho da dramaturgia, faz o rascunho do cenário, da música e do figurino. E aí a gente vai dando acabamento. A gente geralmente não estreia espetáculo. O último a gente estreou, mas normalmente a gente não estreia. A gente vai fazendo, vai testando com o público. Depende muito da interação com o público, depende da resposta. Chega uma hora que não dá mais para ensaiar, então a gente vai para a escola, vai para a rua, vai testando e assim a gente vai construindo”, diz Sérgio Carozzi, em entrevista após a apresentação.
Os membros do grupo fazem teatro desde 1998, mas cada um num contexto. Eles se juntam em 2005, numa ocupação de terra. “A gente era da parte cultural, por isso que chama Lona Preta. Eu e meu irmão, nessa ocupação, a gente fazia entradas clássicas de circo, a gente fez um espetáculo disso. Depois de uns cinco, seis anos, os músicos chegaram, os meninos que são ligados à música, e a gente começou a juntar essa coisa da palhaçada com a música, e a partir daí a gente foi montando um repertório. Hoje a gente tem oito peças que a gente apresenta e tudo com essa mistura: música e palhaçada. E a gente não deixa também, um outro pilar do trabalho é dar nossa opinião no contexto político. A gente acha que nenhuma arte é neutra. Se você vai para a rua, você está fazendo uma assembleia de pessoas, você está conversando com pessoas, se você não se posiciona diante desse caos você está concordando com ele. Então a gente sempre procura deixar claro qual é o nosso lado, do lado da classe trabalhadora, dos trabalhadores, dos indígenas, dos negros, é isso que importa pra gente”.
“A gente se organiza de uma forma mais horizontal, a gente tenta se organizar assim mesmo, é um exercício. Entretanto, a gente vê que as relações dominantes, que inclusive atravessam nosso trabalho, são relações de hierarquia, de concentração de poder, de concentração de riqueza. Isso é dominante na sociedade, não é à toa que uns vão pra lua e outros não têm o que comer, isso é a expressão mais cruel, mais evidente que a relação desigual ainda impera no mundo. Por mais que a gente tenha um esforço de se organizar diferente, a gente também não está numa bolha, fora desse mundo, a gente é atravessado por isso, e a gente está junto com a classe trabalhadora. A maioria das pessoas sofre uma relação de exploração, de opressão no trabalho, e a gente, de certa forma, se coloca junto desse lado da luta”.
A Trupe da Lona Preta faz teatro de rua e isso não foi propriamente uma escolha. Mas o teatro de rua facilitou o contato com o público: “Isso não é uma escolha em que você tem todas as opções. A gente tem um teatro equipado pra gente fazer, uma lona de circo e a rua. A gente olha pros três e escolha a rua. Não é assim. As condições na cidade em que a gente vivia, em Taboão da Serra, onde a gente começou a fazer teatro, você não tinha teatro, o auditório era disputado com igreja, assembleia política, etc. Não tinha espaço, então você era obrigado a ensaiar na praça. Lona de circo já é uma realidade mais distante da gente, mas foi um pouco esse contexto de não ter a possibilidade de fazer, para a gente ter que fazer um teatro a gente depender de toda aquela estrutura, a gente começou a se libertar disso. A Trupe da Lona Preta começou na ocupação e sem estrutura, você tinha no máximo um refletor de frente para iluminar a gente e o resto é o jogo com o público. Então é uma escolha mais ou menos, a gente é meio que empurrado pra isso e a gente se afirma nesse lugar. O que que isso pode nos dar de elementos. Isso favorece o contato com o público. Se a gente se fechar e ignorar o público aqui, não rola. A gente depende deles. A gente escolhe direitinho o espaço, é importante as pessoas estarem tranquilas para nos assistir, senão não rola”.
A Trupe disse que se sentiu em casa em Corumbá, durante o Festival, e que querem voltar. “Pra gente chega a ser emocionante sair da nossa periferia e vir para uma outra periferia. Essa realidade, o jeito de viver é muito parecido com o jeito que a gente vive lá. A gente se sente em casa. E o Festival, super bacana, vários encontros legais aqui, muitos artistas bom, para a gente é um prazer, não tem nem o que falar. Uma comida maravilhosa, peixe, um povo que nos recebe bem hospitaleiro. Estamos muito felizes de estar aqui e queremos voltar”.
Na plateia, Paulo Henrique Rodrigues Cestari, professor de Educação Física, de Corumbá, estava com a esposa, Alice Kawany e os filhos Malu, de três anos, e Pedro Paulo, de um ano e nove meses. Para o pai das crianças, o Festival América do Sul traz a cultura para o povo: “O Festival nos traz uma cultura, nós acreditamos que nossos filhos precisam conhecer melhor a cultura da América do Sul e de todo o Brasil. Eu trabalhei com circo, a gente gosta muito da arte circense, toda vez que nós temos a oportunidade de ver um circo de rua a gente traz eles também. Nós achamos de suma importância para a formação dos nossos filhos, porque nós temos várias culturas que nossos filhos precisam para o seu desenvolvimento. Nós acreditamos que a arte nos traz valores, nos traz desenvolvimento para o nosso futuro, principalmente para eles”.
O casal Luciana Debem, psicóloga, e Rudi Laps, professor de Biologia da UFMS, são de Campo Grande e vieram especificamente para o Festival. “Já viemos outros anos e estamos voltando depois da pandemia, desses dois anos de interrupção, a gente sempre prestigia aqui. Estou até meio gaga aqui. Nós fomos surpreendidos por um trabalho muito bem feito. Eles têm uma habilidade grande com a rua, muito atenciosos com a plateia, e a dramaturgia e a música do espetáculo, prende, faz pensar, porque a dramaturgia é bem revolucionária, é instigante e dá para perceber que eles merecem aplausos e merecem ganhar muito mais do que eu imagino que eles ganham, porque são bem rigorosos no que fazem. Eu saio emocionada com o espetáculo, com todos os detalhes, detalhes de roupa, de cenário, e as músicas, fazer música no palco e na rua é muito desafiador pro artista”, diz Luciana.
“São artistas completos, você percebe que eles estão numa atuação de palco, na rua, num palco bem complexo, e são ótimos músicos, sabem tratar as crianças muito bem, essa interação com as crianças foi muito boa, que é uma coisa essencial numa proposta circense, numa proposta de palhaço. Além dessa técnica toda ser muito bem feita, eles emocionam”, finaliza Rudi.
Texto: Karina Lima
Fotos: Marithê do Céu